Chovia na manhã de terça-feira. Chovia tanto que pedi a minha mãe que não me acompasse ao Forum da cidade, conforme havíamos combinado, para solicitarmos um alvará na Defensoria Pública.
Peguei uma carona com meu irmão. Pela avenida, ele me deixou numa esquina mais próxima. Esperei o sinal abrir para atravessar. Fiquei bem longe do meio fio porque não se pode confiar nos carros que passam às sete e meia da manhã por uma avenida tão movimentada como esta. As poças já se formavam e fazia frio, em pleno verão.
Após sair do Fórum, andei até o salão de cabelereireiros onde então iria encontrar com minha mãe para nossa manhã de beleza. Fizemos cabelos, unhas, para que no dia seguinte estivéssemos lindas para comemorarmos meu aniversário num restaurante bem chique da cidade. A caminhada até o salão demorou em torno de 20 minutos e mesmo com guarda-chuva e botas, cheguei ao salão com a calça jeans molhada até o joelho. Sempre chove no meu aniversário, já estou acostumada. Saindo do salão tínhamos a intenção de fazer outras pequenas coisas mas aquela chuva não dava trégua e nos desanimou. Voltamos para casa.
Choveu a tarde inteira. Freddy, o “poodle-lata”, educado a não fazer nada dentro de casa e nem nos quintais, só teve cerca de cinco minutos para uma caminhada rápida, por volta das 5 da tarde, quando a chuva deu uma estiada.
Chovia quando a noite chegou. A novela das 9 havia acabado quando a chuva apertou. Desliguei a televisão e deitei com minha mãe. Sempre durmo com minha mãe quando venho visitar, mesmo quando meu pai ainda era vivo.
Peguei no sono mas acordei quando os trovões começaram e a chuva caía mais forte. De repente faltou luz e nossa luz de emergência apitou e ligou na cozinha. Faltar luz em Friburgo quando chove sempre foi algo comum. Algumas pessoas até costumam dizer que se um pássaro mijar nos fios pode faltar luz. Mas o perigo maior é quando a luz volta. Como nossa voltagem lá é de 220 volts, às vezes alguns aparelhos eletrônicos queimam quando a luz retorna. Então, me levantei e desliguei as televisões da sala e do nosso quarto.
A água da chuva agora competia com os trovões e relâmpagos para ver quem me assustava mais. Por volta de uma da manhã meu irmão, que dormia no quarto ao lado, me acordou dizendo que o rio estava transbordando. Uma vizinha da serralheria dele, que fica a dois minutos de casa, ligou dizendo que talvez ele devesse dar uma olhada por lá porque a água do rio já estava tomando as ruas ao longo de suas margens e logo entrava na oficina, que ficava do outro lado. Meu irmão então ligou para seu ajudante, que também mora perto, e os dois correram para lá.
A chuva continuava forte e eu fui para a janela da sala, tentando não fazer barulho para não acordar minha mãe, que dormia como se nada acontecesse. Em frente a nossa janela, na rua que desce, transversal ao rio, a água já subia. Alguns moradores de lá tiravam seus carros das garagens e os traziam para o alto da rua. De repente, a luz se foi de novo.
Com o clarão dos relâmpagos acompanhei o rio invadindo cada vez mais a rua da frente e algumas pessoas começaram a se juntar no topo para ver o que acontecia. Um homem apareceu com um bote, mas a correnteza pareceu ter desencorajado qualquer que tenha sido a idéia que ele teve.
A chuva persistia e mais de uma hora depois de sair, meu irmão ainda não havia voltado. A luz voltou. Na rua de frente moradores começaram a subir para o segundo andar de suas casas, para as lages – ouve gritaria. A água estava subindo muito rápido. Já chegava na altura das janelas.
Chovia sem parar agora e meu irmão retornou com o ajudante e um amigo. Eles ficaram com medo de voltar para onde moram porque disseram que está arriscado a cair uma barreira por lá. Soubemos que alguma barreira caiu próximo. Todos ficam na sala, ninguém dorme mais. Volto para o quarto e me deito com minha mãe para que ela não acorde e sinta a minha falta e se assuste. A chuva, que já era forte, parece ficar ainda mais intensa. Não há como dormir.
Quatro da manhã ouvimos o estrondo. Pulo da cama e meu irmão entra no quarto e diz que uma barreira caiu no quintal de trás e que precisamos sair da casa. Tento acalmar minha mãe mas vejo que as mãos do meu irmão tremem. Segurando minha mãe saímos pela porta da frente. Chove muito mas não há como achar guarda-chuva. Não podemos ir para atrás da casa, onde estão os dois cachorros maiores. O primeiro pedaço de pano que vi serviu para cobrir minha mãe. Freddy está no colo dela. Alguém carrega a luz de emergência. Descemos os degraus e nos deparamos com uma espécie de um rio, de correnteza forte, no quintal da frente, tentando abrir caminho pelo nosso portão de placas de ferro. A garagem parece um lago de água barrenta. Alguém tenta abrir a porta do portão mas o portão abre para dentro, contra a correnteza, e não consegue. Eu sugiro que abríssemos o portão todo, que é de correr, e quando eles tentam fazer isso a água leva o portão abaixo, que cai no meio da rua. Aquela enxurrada de água barrenta que teremos de atravessar fica ainda mais forte. Percebo que com a intensidade da água que corre não teria equilibrio para andar de chinelos e que teria mais firmeza para me equilibrar e segurar minha mãe descalça. Assim fiz. Saímos de casa e vamos para uma marquise do prédio ao lado.
Chove mais. Os trovões são tão altos que não sabemos mais se são trovões ou outra coisa que nunca ouvimos antes. Começo a tremer por dentro. Estamos todos calados. Só assistimos, ao vivo, ao espetáculo que a natureza nos descortina de luz, som e água, muita água. Minha mãe lembra que hoje é 12 de janeiro, meu aniversário. Nos abraçamos em silêncio. Nosso abraço parece confortar a todos.
A rua na nossa frente começa a encher de água, os bueiros não conseguem dar conta. Àgua desce das ruas de cima. Se cair uma barreira ali em cima, não temos para onde correr. O rio a nossa frente sobe em nossa direção. Estamos encurralados.
Cinco da manhã e água ainda cai dos céus com força. Daqui a pouco vai amanhecer. Tem que amanhecer logo! Seis da manhã e a escuridão começa a dar espaço a alguma luz. A chuva está mais amena mas insiste em cair. O vizinho do outro lado nos convida para entrarmos no seu prédio, que parece seguro. Do alto da janela dele vemos o que não conseguíamos ver sentados próximos ao chão. A catástrofe tomou conta do nosso bairro. As casas mais baixas e próximas ao rio foram inundadas de forma que as janelas foram cobertas. Clarões nas montanhas da frente nos revela que barreiras podem ter caído por ali também.
Por volta das sete e meia da manhã a chuva deu uma trégua que parecia ser de verdade. Entramos na nossa casa. A cozinha, o quarto da minha mãe e o banheiro foram inundados por aquela mesma água barrenta que quase nos impediu de sair da casa na noite anterior. Eu busco os cachorros. Cada um subiu numa cama. Estão bem. Minhas malas, que já estavam fechadas no quarto de visitas atrás da casa, também receberam a visita de água com terra. O quintal de trás tem quase dois palmos de lama. Mas na verdade nenhuma barreira havia caído por lá e sim na rua de cima. A água que descia pela rua fora bloqueada e não tinha por onde escorrer, então desceu pelo nosso muro, como uma cachoeira. Ficamos tristes mas resolvemos que temos que limpar aquilo tudo antes de a chuva voltar.
As notícias então começam a chegar. Barreiras caíram nas duas direções da nossa rua. Estamos ilhados. Não há luz nem telefone. A ajudante que trabalha lá em casa aparece e diz que perdeu tudo, a água entrou na casa dela numa altura de dois metros. Numa comunidade próxima, um deslizamento parece ter levado várias casas abaixo. Há pessoas ainda embaixo da lama. Estão tentando resgatá-los. Em algumas horas vamos nos dar conta de que a cidade inteira foi afetada. Vidas se foram naquela noite. Agora, em comparação, quando alguém nos pergunta se algo aconteceu com a gente, a única resposta que podemos dar é: “Não, com a gente não aconteceu nada”.
Hoje faz um mês que Nova Friburgo e outras cinco cidades serranas do Rio de Janeiro foram devastadas física, psicológica e emocionalmente por uma tragédia que afetou a todos de uma forma ou de outra. Minha mãe não voltou para aquela casa, que guarda tantas lembranças. Acho que nenhum de nós conseguiria dormir mais ali se chovesse uma daquelas chuvas de verão, tão comuns nessa época do ano. Ela, Freddy e meu irmão estão num apartamento nosso que, por coincidência, estava para ser alugado. Os dois cachorros maiores vão ter que ficar na casa de um tio querido, pelo menos por enquanto. Mas ainda há famílias inteiras de trabalhadores, crianças e pessoas honestas vivendo em abrigos, quase quatro mil pessoas só em Friburgo. Tantos outros estão nas casas de parentes. Bairros afastados ainda contêm barreiras a serem retiradas, animais perdidos estão sendo cuidados por voluntários. Pequenos e grandes empresários perderam estoques de mercadorias, máquinas com que trabalhavam. Não podemos esquecê-los. Mesmo quando as notícias nos jornais ficarem escassas.
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